VAI TRABALHAR, VAGABUNDO!
Ouvi dizer que o Intimorato Cronista trará novidades para os premium! Dica musical tem o fantástico Café Tacvba;
Tenta pensar no futuro
No escuro tenta pensar
Vai renovar teu seguro
Vai caducar
Vai te entregar
Vai te estragar
Vai trabalhar
Um dia desses, passei a tarde atrás de emprego. Fila e mais fila, procura e mais procura. A maioria é de médio completo para cima. Como já excedi o limite etário para jovem aprendiz, foi difícil achar uma vaga. Mas ela veio, era para auxiliar de almoxarifado, ou coisa assim.
No dia seguinte, às 15h, eu teria a entrevista em Piraquara. Fui para casa e no outro dia saí antes do meio dia, para garantir que chegaria lá a tempo. Confiei na minha própria orientação, de alguém que por anos é das ruas. Nas proximidades do Prédio Histórico, embarquei numa linha que desembocava no terminal central da cidade vizinha.
Piraquara, aonde o crime dorme. 14h45 e eu já andava em solo piraquarense. Comecei a observar a cena. Céu de brigadeiro e as árvores com pingos de ouro se agitando com cada rajada de vento refrescante que atingia a copa. As ruas pouco comunicavam, mas os estabelecimentos comerciais se esforçavam. Eu caminhava sem pressa, à procura do lugar conforme fora descrito: um prédio curto com detalhes em verde e cinza, vidros espelhados. Passavam as quadras e nada de aparecer um lugar com tal descrição.
15h15, quadras e mais quadras de percurso e nem sinal do bendito prédio. O telefone toca, e no outro lado certamente haverá alguém perguntando o porquê de eu não estar na entrevista.
“Alô.”
“Então, pra te falar a verdade, eu não achei esse lugar!”
“Esse lugar existe? Você falou parte baixa de Piraquara, o lugar, você disse, era bem visível, mas já tô aqui a meia hora e não encontrei nada!”
“Como assim, Tatuquara? Não, não, você disse Piraquara, eu me lembro bem! Pi-Ra-Qua-Ra! Nada de Tatuquara!”
“Isso é algum tipo de brincadeira?”
“E quando que tem outra seleção pra essa vaga?”
“Não tem mais? Sério isso?”
Um erro de comunicação que custou uma viagem terrível para nem sequer ter a oportunidade de passar por uma seleção chata, disputando a vaga com alguma loira com tatuagem de borboleta azul no ombro, em um escritório acinzentado onde os recrutadores riem das caras preocupadas dos candidatos enquanto o ar condicionado lhes resfria o corpo e rasga a alma.
Aproveitar-se de um sufixo comum para confundir a vida de alguém, acabando com a possibilidade do emprego digno, transformando em perdida a tarde que consagraria os meus vinte e sete anos. Não pude acreditar em tamanha desconsideração. Assim são tratados os desempregados neste país, pesarosamente.
Tatu-quara… Pira-quara… quer saber algo curioso? Quara, em tupi, significa refúgio. Irônico, para quem está completamente desnorteado, não é? Perdido, em um lugar onde nunca estive antes, e para completar, a merreca de três reais com quarenta centavos em dinheiro vivo, não suficiente para uma passagem. O cartão da URBS estava até cheio, mas, antes que pudesse me animar, lembro imediatamente que não funciona fora da divisa de Curitiba. Como voltar?
Estava por conta de um velho cartão de crédito, que tinha para emergências. Porém, a próxima tarefa era achar uma agência bancária, e quando dei por conta, estava no meio do nada. Banco? Só lá pra parte central. Como chegar? Enfim, uma hora hei de encontrar o caminho. Sem pânico. Avisto um pequeno mercadinho – o que eu precisava. Saio de lá com uma garrafa de cachaça adocicada com gosto de limão. Estava geladinha, uma ótima companheira de empreitada. Continuei andando na direção que os sentidos guiassem – modo guerrilha ativo. Se guerrilheiros, que enfrentam série incomparável de perigos, ainda conseguem se localizar no puro mato, quem disse que eu, em plena civilização, não posso?
Avistei, então, uma praça deserta. Era apenas eu, alguns pombos e um cachorro encolhido dormindo num banco, à esquerda de onde me pus a sentar. Bebericava minha cachaça enquanto relia alguns velhos poemas que ainda marcavam presença nos meus bolsos desleixados. Quantas porcarias, ora. Amassei os papeis e os joguei na lata de lixo. Comecei então a lembrar da época em que vivia nas ruas e das ruas. Procurava versos, e, às vezes algo pra comer dentro de latas de lixo. Ia uma por uma à esperança de encontrar alguma coisa como a que joguei agora.
Eu me sentia bem ao lixo – não apenas porque era democrático e nele não havia nada que fosse totalmente desinteressante nem descartável – mas porque o lixo naquela época era o único espaço público que parecia ser receptivo e era livre de julgamentos, me deixando à vontade. Eu era mais humano.
No entanto, decidi começar uma nova era em minha obra. Iniciando exatamente agora. Giro noventa graus, deito sobre o divã – começo a pensar em Júlia. Busco inspiração nos pombos que ciscam e compreendem o espaço da praça. Que belo exemplo de convivência.
Passa uma viatura – escondo a garrafa na mochila e me sento novamente como o homo erectus. Tranquilo: um trabalhador em seu horário de almoço. Eles vão embora e eu sigo em frente. Havia um pombo que se destacava. Era maior que todos, uma espécie de manda–chuva. Era classudo. Andava em passos lentos no epicentro da aglomeração, fazendo uma espécie de pêndulo entre as ações das aves. Que bicho fantástico. Flutuava ladrilho por ladrilho, rudimentar e cartesiano. Fazia movimentos progressivos como se ouvisse música, que modéstia! Se há música, arte, vida nessa praça, ela vem toda por parte desse colosso cosmopolita de penas cinzentas! Um embaixador da paz, um tradutor da essência universal.
Levantou calculadamente o seu vôo até o topo de um poste. Lá de cima, a luz do sol fazia–lhe uma graciosa silhueta, realçando sua potência e majestade. Então, deixou a praça órfã e seguiu a bater asas para o horizonte, reluzente e arquimediano. Tenho que agradecê–lo por um dos momentos mais memoráveis e intensos que já passei.
Eu tinha que contar tudo isso para a Júlia! Seria algo do tipo:
“Ei, amorzinho! Não sabes o que me aconteceu! Veja, estava eu, pensando nas amenidades da vida ao proveito de uma bonita e pacata praça na tarde ensolarada, para, de repente, me deparar com alguns pássaros. Ainda que de maneira repentina, foi incrível o equilíbrio e alegria que aqueles bichinhos foram capazes de trazer.
Ok, na verdade eram pombos. Feios, verminosos e contaminados pombos. Estavam num terreno sujo, de mato alto, na puta que pariu de Piraquara. O que eu fazia por lá? É uma boa pergunta, cuja resposta poderia ser uma grande aventura, mas na verdade era uma entrevista de emprego. Que na verdade não foi lá, aconteceu no bairro do Tatuquara. Mas acontece né?
Para auxiliar de almoxarifado. Não sei exatamente o que faz, deve ser uma porra, mas deve dar pra sobreviver melhor do que com as entregas, não é?”
Esquece.
Continuo ali, a olhar aqueles pombos na ausência total de seu líder. Andando em círculos, esperando por alguém que os alimente. Se quiserem perder a dependência espiritual de seu mestre, podem querer compensar enchendo suas barrigas. Mancada minha, junto à cachaça devia ter comprado um pacote de pipoteca.
Mas quem parecia estar mais faminto era o cachorro da praça. Ele acordava meio tonto, deu aqueles cochilos atordoantes de meio da tarde. Ele tinha pêlos engraçados. Senti a embriaguez batendo, à medida que observava os ventos tremulando aqueles pêlos esquisitos. Tirou pra fora o rabo e olhou na direção dos pombos. O rabo dele era estranho, branco e magro demais. Ele então correu para atacar os pobres pássaros da praça quando eu me toquei que não se tratava de um cachorro, e sim, de uma ratazana. Uma ratazana gigante. Nunca tinha visto deste tamanho antes. Brutal e linear, o ratão esfomeado aterrorizou os coitados dos pombos, órfãos de tudo. Todos voaram para longe.
Então, o rato resolveu trocar de alvo. Foi quando me olhou. A cara magra, orelhas levantadas, expressão de fome. Ouriçou os pêlos e fez sinal de ataque.
Tinha fração de segundos para me defender – a criatura vinha voraz e ágil na direção do banco da praça. Subi no assento e pensei no que poderia fazer para contê-la. Ela dava seu grito de guerra agudo e horrível enquanto preparava para saltar o assento do banco, com os dentes frontais afiados prontos para cravar minha perna. Não tive outra opção: com a garrafa, acertei um golpe forte, tão forte que chegou a rachar o centro. O estrondo de quebra simultânea de vidro e crânio foi horroroso. O bicho ainda rodopiou por duas vezes antes de se esparramar no chão em definitivo.
Confesso que senti um pouco de pena do bicho. Não queria tê-lo matado dessa forma - nem era, aliás, para eu estar ali, não é? Fiquei por instantes trêmulo e horrorizado. Não sei qual era a maior urgência dele, matar a fome ou espantar os estranhos da sua praça – que nem dele era, pra começar, era do pombo! De qualquer forma, ele vinha com a certeza de que me traçaria inteiro nesta tarde. Não pararia para negociar. Que bicho horroroso.
Estragou o bom momento com os pombos, minha experiência antropomórfica – os bons momentos, de fato, duram pouco – achar o equilíbrio pessoal e buscar um acolhimento espiritual, até o momento que algum rato gigante vem para lembrá-lo do que é sua realidade: um cagão de médio incompleto, desempregado, que nem ratazanas respeitam. Perdido, amedrontado, sem até a cachaça. Será que não mereço mais do que isso?
O terceiro mundo já explodiu?
Como vão, caros opiáceos e opiáceas? A edição do último dia 16 não caiu no teu imbox porque Este que Vos Fala ainda é um tanto relapso quanto às atribuições de sua vida literária. Sabe, porque a vida é assim, este intimorato cronista primeiro precisa alimentar o corpo para depois alimentar a alma. Assim é que fomos feitos. Você sabe.
Para compensar, o trunfo já está na manga. Vem coisa boa por aí para nossos assinantes PREMIUM. Sabe esta historinha que você acabou de ler? Ela foi adaptada de um velho romance escrito por muá, um romance engavetado. E, por consideração a meus queridos assinantes, não ficará restrito às traças que habitam minha gaveta. Pintará aqui, nesta newsletter, paliativamente, em publicações especiais!
Claro, ele será bem revisado e substancialmente alterado, pois sua versão original data nada menos do que o longínquo 2018, quando esta flor ainda vivia no ovário de sua mãe.
Você que reclama de não ter tempo para ler romances, vai ter a oportunidade de ler um dentro de sua caixa de e-mails. É ou não é um barato?
Então pega a voga, cabeludo, vire um opiáceo já!
Dica musical
E a dica desta edição vai para…
Você, fã dos mexicanos do Café Tacvba, que provavelmente conhece de cabo a rabo o clássico Re, de 1994, mas pode não ter olhado o seu vizinho, de 1996, com o carinho que merece. A criatividade deste aqui vai além, viu? Desce o play.
Imperdíveis:
“Chilanga Banda”
“Ojalá que Llueva Café”
“Como te Extraño mi Amor”
Obrigado e volte sempre
Aqui, na maior newsletter do submundo virtual, você nunca fica sem uma grande novidade. Assim que você gosta e eu também. E saiba que é muito bom tê-lo, tê-la por aqui.
Um abraço, e espero que esta edição tenha mudado a sua vida. Se não mudou, a próxima muda.
Foit!